quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Oração da Nau à Deriva

     Achei oportuno compartilhar este excelente texto de Lya Luft, colunista da revista VEJA. Não há nenhuma conotação política explícita, mas nos arremete à uma reflexão sobre o nosso país. O texto foi publicado em dezembro de 2014, mas é atual e continuará sendo por muito tempo. Vale ler e refletir.

Oração da Nau à Deriva

     Senhor, neste mar indeciso e muitas vezes encapelado em que estou perdida, dá-me alguma certeza de que existe uma rota firme e fixa, de que o trajeto correto é possível e de que no fim desse nevoeiro me espera uma luz positiva, uma luz boa, não apenas promessas e palavras vãs, mas realidades necessárias para que eu sobreviva com minha preciosa carga humana, moral e material de tantos bens que vêm sendo mal cuidados.

     Dá-me, Senhor, uma tripulação competente, com alta perícia, que me tire destas dificuldades e aflições, e me faça retornar ao que devo ser: um barco singrando águas promissoras, com possibilidade de sucesso. crescimento, bem-estar e felicidade para os milhões de passageiros que confiam em mim, e pelos quais sou responsável. Pois, no nevoeiro, e com tantas nuvens de tempestade ameaçando, talvez rochedos fatais debaixo da linha d´água, tenho medo de soçobrar.

     Dá-me, Senhor, um timoneiro experiente, sério honrado, de pulso firme e ideias claras, coerente, decidido, que saiba o que faz e que deseje fazer o que é preciso para corrigir os rumos, a fim de que esta viagem acabe bem, sem ligar para interesses diversos fora dessa sua missão única: salva a nau, os passageiros, os bens aqui embarcados, e abrindo possibilidade de muitas boas viagens por este mesmo mar.

     Dá-me, Senhor, responsáveis que escolham sua tripulação segundo seus merecimentos e preparo, gente boa, corajosa, incansável, que consiga limpar as águas apodrecidas em que de momento estou mergulhada. São sujeiras de alguns anos, às quais tanto nos acostumamos que a ideia de despoluir este oceano chega a espantar, como se isso não fosse possível, e devêssemos todos, meus passageiros e eu, nos acomodar à ideia de que é assim mesmo, de que a podridão é normal e o resto são utopias antiquadas

     Dá-me, Senhor, águas limpas para navegar , pois nestas em que navego boiam algas e sujeira e até cadáveres que se prendem na minha quilha ou impedem a hélice de funcionar: flutuo devagar, inclinada, num mar morto, à beira de um naufrágio. Não adianta mentir, nem inventar que estou bem, pois estou naufragando em águas turvas com milhares e milhões de passageiros em meu bojo, a grande maioria dos quais não faz a ideia do que realmente acontece. Meus madeirames estalam e tremem, mesmo assim há quem diga que estou em boas condições, que os malefícios são mentiras, que tudo está controlado. Contra a mentira e a mediocridade generalizadas, e a resignação de tantos de meus passageiros, iludidos ou desinteressados, preciso de tua ajuda.

     Dá-me, Senhor, gente que acredite que vale a pena mudar, que incômodos, aborrecimentos, e até receios que quaisquer transformações impõem, são essenciais e benfazejos nestas horas, que graves revelações precisam ser seguidas de graves punições, sem as quais nada vai mudar, e continuarei sendo uma nau incerta e ameaçada, enquanto outras muitas seguem em viagens bem-sucedidas, crescendo em importância e benefícios para sua gente, integradas na frota global onde tantos escapam de tempestades e recuperam seus eventuais perdidos roteiros.

     Minha esperança, Senhor, é que com tua ajuda eu receba apoio e parceiros na busca da verdade, da honradez, da mudança firme, radical, talvez dolorosa, que me livre de ideologias funestas e arcaicas, por meio de um inaudito e necessário esforço pelo bem geral. Que acabem as maquinações ocultas ou ameaças ruidosas do perverso desejo do poder pelo poder, e da manutenção do poder espezinhando a democracia, única salvação de qualquer povo

     E assim, quem sabe, numa difícil e audaciosa empreitada, a gente escape dos redemoinhos fatais e volte a se equilibrar, redescubra as melhores rotas e, com motores liberados de ônus perniciosos, velas abertas a ventos limpos e benéficos, eu retome minha imagem positiva, e talvez me salve, com meus passageiros, da ruína final.

     Dá-nos, Senhor, dádiva da renovação pra que eu seja uma nau respeitada e bela, e não restos de naufrágio em qualquer ilha esquecida.
Lya Luft é escritora
Revista Veja edição 2402 de 03/12/2014

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